sábado, 9 de outubro de 2010

Darcy e a reinvenção da universidade brasileira

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Essa reportagem ganhou em primeiro lugar no Projeto Integrador de Jornalismo (2º Semestre) do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB) no 1º Semestre de 2010. Foi criada e editada por mim (Paulo Eduardo Lannes Souza), Gabrielle Garcia Soares e Ana Paula Almeida, todos alunos do IESB.
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Não é possível falar em Universidade de Brasília sem falar em Darcy Ribeiro. Esse é o nome do principal campus da UnB. Ele também foi um dos principais pensadores modernistas do Brasil e o principal responsável pela criação da UnB. Seus pensamentos marcaram época não apenas no Brasil, mas como em toda América Latina. Essa marca é tão forte que até hoje suas idéias são atuais, sendo bastante aclamado pelos estudantes e educadores da atualidade.

Notoriamente esquerdista, acabou por ser constantemente perseguido durante a ditadura militar no Brasil. Isso fez com que a chama de suas reformas universitárias fosse apagada à força. Desde a redemocratização brasileira, tem havido uma retomada desses pensamentos modernistas. Entre trancos e barrancos, o ressurgimento das idéias “darcyanas” tem trazido bons resultados, mas em uma nova realidade, elas tiveram que se reinventar.

A semente do saber
Na década de 60 surgiu no Brasil e na América Latina um movimento de intelectuais que analisava criticamente as universidades. Havia há muito tempo que as universidades precisavam ser reformadas e os pensadores modernos se reúnem para repensar um novo modelo educacional, gerando assim uma Reforma Universitária. Em meio a esse turbilhão, surge Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, dois dos grandes educadores da época.

Como no Brasil não havia universidades com um grande repertório de artistas, cientistas e educadores. Para Darcy, deveria nascer “universidades-semente”. Elas seriam livres para ousar e inventar novos modelos, sendo universidades experimentais, diferente das “universidades-fruto”. Que eram as antigas que estavam renascendo, como a Sorbonne, na França. Na cabeça de Darcy, funcionava a seguinte lógica: para que o fruto nasça, primeiro temos que semear a terra. Seguindo essa lógica, as “sementes” teria uma liberdade e ousadia que as “fruto” não tinham. No Brasil, até que existia a Universidade do Brasil, que seguia esse modelo, mas que não tinha uma ambição de se integrar com outras universidades, acabando por não espalhar suas idéias pelo mundo afora.

Muitos dos pensadores brasileiros estavam descontentes com a “caretice” dos modelos universitários. Darcy Ribeiro fazia parte desse grupo. Unindo sua experiência como pesquisador e sua raiva das velhas estruturas, passou a ousar no campo educacional, fazendo a seguinte pergunta: Universidade para quê?

Partindo deste questionamento, fez uma revisão do significado de universidade e como ela poderia ser aplicada no campo do saber e da vida. Assim, as universidades, que antes não passavam de um aglomerado de cursos superiores, deveriam se unir e começar a interagir uma com a outra. Então, Darcy propôs aos estudantes que montassem seus currículos, transformando-os em cidadãos que pudessem contribuir nos assuntos complexos da sociedade, que precisavam ser solucionados com as mais variadas habilidades. Ele acreditava na criação de cursos de integração cultural, obrigatórios para quem quisesse conhecer um pouco de tudo e ser um generalista nato. Simultaneamente, sugeria uma abertura permanente dos cursos, para que os já formados pudessem retornar e se atualizar.

Apesar de ser bastante utopista, Darcy não era idealista. “Idealista é aquele que pensa coisas que não tem contato com a realidade. Nas coisas de Darcy, havia muito contato com a realidade, a única diferença é que ele pensava à frente.” diz Cristovam Buarque, senador, renomado educador e amigo de Darcy Ribeiro.

“Faça-se a luz”

Ainda nos anos 60, Brasilia nasce. Sim, a cidade nasce no momento em que acontecem os movimentos de intelectuais no mundo. Sabendo que o presidente brasileiro da época, Juscelino Kubitschek, queria construir uma “cidade nova, com gente de mentalidade renovada, sem nenhum complexo de inferioridade colonial e sem nenhuma subserviência classista”, o modelo de universidade imaginada por Darcy Ribeiro e seus pensadores modernistas entrou como uma luva. Nesse contexto, a Universidade de Brasília nasceu.

Primeiramente, na UnB, o sistema de cátedra caiu por terra. Não haveria mais professores agindo como deuses. “O projeto de Darcy veio para quebrar essa hegemonia do saber, que era distante de um fazer. É um modelo pedagógico muito diferente.” Diz Cristina Madeira, atual coordenadora pedagógica da UnB. Assim surgiu a criação dos departamentos como unidade mínima acadêmica, ligando professores, funcionários e alunos. Nessa reforma surgiu também o sistema de créditos, que foi capaz de unir ensino e pesquisa e colocou a pós-graduação como atividade regular da universidade. Tamanha é a importância da pós nos dias de hoje, que se tornou pré-requisito para qualquer estudante, trazendo um novo nível para a educação brasileira.

Como pioneira da pós-graduação, os alunos, durante o curso, atuavam como instrutores e ajudavam os professores a darem aulas de graduação, criando assim um sistema eficiente e independente. “O curso de medicina não iniciou aqui, no plano piloto. Começou em sobradinho porque todo o trabalho, disso que a gente tem hoje como gestão de saúde comunitária, era o modelo de medicina da época.” diz Cristina, mostrando o quanto era importante a ligação da prática com a teoria aprendida. Essa integração levou o nome de método keller, responsável por formar uma ligação entre aluno e professor. Esse método trouxe como vantagem, a institucionalização da carreira de docente, o que não existia até essa época. “Ele mostra também como o ensino superior ajuda a formar a educação de ensino base, ajuda na economia, ajuda a sociedade e ajuda a cultura.” diz Cristovam Buarque.

Na estrutura física da universidade, havia sido construído o primeiro Instituto de Teologia Católica após a Revolução Francesa e a primeira Faculdade de Comunicação de Massa, que ligaria jornalismo, publicidade e propaganda, televisão, rádio e cinema. Numa época em que a televisão havia acabado de chegar ao país, essa nova estrutura se mostrou altamente revolucionária. Isso catapultou a UnB para um dos centros educacionais mais importantes do Brasil. Se Kubitschek queria que o progresso do país avançasse cinquenta anos em apenas cinco, Darcy mostrou como isso pode se tornar realidade.

Em Brasília, por toda a sua jovialidade, havia uma forte ligação entre a cidade e a universidade. Muitos dos professores haviam participado da construção da capital e da formação de uma sociedade brasiliense. No topo da lista se encontram Oscar Niemeyer (arquiteto), Athos Bulcão (artista plástico) e Vladimir Carvalho (cineasta). Em detrimento, houve uma preocupação com o dia a dia brasileiro, buscando soluções para as deficiências da sociedade e saindo do campo acadêmico. Assim, a cidade não seria responsável apenas por inovar no campo arquitetônico e no campo urbanístico, mas também no campo cultural, com a UnB. De fato, o sucesso se mostrou tão estrondoso que outras universidades (até as mais antigas e bem conceituadas) começaram a rever seus métodos de ensino e a se modificar, adequando-se a uma nova realidade.

A Mancha Negra

Durante a Guerra Fria, os estadunidenses mexeram com a cabeça dos brasileiros, influenciando-os em suas vidas. Como a base da vida é a educação, era de se esperar que houvesse uma reforma brusca no ensino da época. Surpreendentemente, os jovens e os estudantes se levantaram contra essas mudanças. Organizados pela UNE, não ficaram parados diante dessa tentativa de controle.

Na UnB, essas manifestações chamaram atenção pelo espaço físico da universidade, que, com o grande campus que havia, contribuiu para integrar os estudantes e fortalecer o movimento político estudantil. Assim, a UnB deflagrou sua primeira greve ainda no ano de sua inauguração, em junho de 1962. Isso viria a criar uma imagem negativa da UnB: a de que ela era um reduto de jovens marxistas.

Em 1964, o golpe militar se mostrou uma verdadeira surra para a universidade e seus projetos modernistas. Ela passou a ser vista como um símbolo de subversão que precisava ser combatido. Então, os militares começam a interferir na vida acadêmica, buscando suspeitos ligados ao comunismo. Chegaram a atear fogo no Instituto de Teologia e desmantelar a Faculdade de Comunicação de Massa.

Um ano depois, duzentos e dez professores se demitiram voluntariamente (cerca de 80% do corpo docente), num claro protesto à pressão exercida na universidade. Isso aconteceu em 1965. A universidade havia sido inaugurada há três anos e ainda estava em construção. Além de não ter gerado um tempo lucrativo, tudo que havia sido plantado se perdeu. A árvore que era a UnB havia se tornado estéril, entrando em uma crise profunda.

O período negro da universidade se afirmou quando chegaram os novos professores no ano seguinte. Antes, o corpo docente consistia na nata da ciência e das artes. Os novos professores estavam apenas preocupados com a renda salarial e com a manutenção da opressão militar no campus. Até o reitor não tinha nem idéia das propostas educacionais de Darcy Ribeiro. Novamente, os estudantes iniciam uma greve que fortaleceu ainda mais o movimento estudantil. Dessa vez, as tropas invadiram a UnB e vários estudantes foram presos no Teatro Nacional. Nunca alguém havia enlameado tanto a cultura que estava sendo construída na nova capital.

Em 1968, uma nova manifestação surge na UnB. E essa será capaz de mudar o rumo da história brasileira. De acordo com o filme “Barra 68” de Vladimir Carvalho, essa greve teria sido o estopim para a implementação do AI-5, responsável por vetar todos os direitos de cidadão existentes na época e fechar o Congresso Nacional. Iniciando uma onda de terror, muitos estudantes foram presos e pessoas desapareceram, outros optaram por se exilarem em no exterior ou simplesmente calaram suas opiniões. Honestino Guimarães, famoso líder estudantil da época, foi dado como desaparecido e a UNE se torna clandestina. E Darcy Ribeiro viu seus projetos desaparecem e a universidade se transformar em mais um centro de “paus-mandados”, acabando por se exilar, junto com muitos outros modernistas.

Com a queda da força estudantil e o exílio dos grandes reformadores, a UnB se transformou em um campo livre para os militares. Então o novo reitor, oficial da marinha, José Carlos Azevedo, inicia diversas construções no campus universitário, contando com o apoio financeiro do governo. Seguindo o discurso militar no qual as palavras-chaves eram “eficiência e progresso”, a UnB se viu em uma nova reforma universitária.

Nessa reforma, voltou a vigorar o sistema catedrático e foram criados institutos e departamentos fantoches, comandados pela mão de ferro dos militares. Mas, no final das contas, essa nova reforma não passou de uma farsa ao nascer com a liberdade castrada e com renovações de modelos a partir de conceitos já abandonados, por se mostrarem falsos e ineficientes. “(...) a UnB estava envolta por um clima de medo, professores vigiados (...). Estudantes intimidados, ameaçados em sua ânsia de indagar, (...) obrigados a conviver com delatores e agentes disfarçados dentro de salas de aula.”, conclui Beto Almeida, ex-aluno da UnB, no blog “Independência Sul Americana”.

Mas como nem tudo são espinhos, houve algumas medidas educacionais que funcionam até os dias de hoje. Como diz Cristina Madeira, “Há uma transição muito grande para a universidade e cria-se um projeto político educacional de departamento, modelo de Gestão coletiva que até hoje faz parte da gestão da Universidade. Nessa época, (...) o modelo da UnB se institucionalizou.”. As palavras de Cristina são confirmadas pelo filme “Barra 68” que mostra a universidade confusa, em meio a seu punhado de idéias e manifestações.

Com a ditadura, a UnB se afirma, deixando de ser “clandestina” e se tornando realmente uma universidade federal. Nessa época, nasceu a unificação do vestibular por região, limite no número de vagas, ingresso por classificação, curso básico que reúne várias disciplinas e a dispersão da graduação. E, até hoje, esses modelos se mantém.

Na UnB, mesmo diante dessas transformações, a falta de liberdade tornava o ambiente irrespirável. Em 1977, houve o último levante de alunos e professores, que (novamente) foram reprimidos. Vários líderes foram presos, sufocando de vez o movimento estudantil. Mas, Beto Almeida mostra que o espírito de luta dos estudantes não morreu: “Em maio de 1977 (...) vencem as teses de que a universidade não pode nem deve ser separada da sociedade, das lutas dos trabalhadores e que deveria servir ao povo brasileiro.”.

Renascimento do saber

Com a queda da ditadura militar em 1985, a redemocratização não atingiu apenas o plano político, levando mudanças também para os da cultura e educação. A realidade já é outra e os antigos planos de Darcy Ribeiro não caberiam mais. Não totalmente. “As bases que Darcy Ribeiro tinha da universidade a serviço da população, da liberdade, sem preconceitos e multicultural cabem. Mas tivemos que adaptar. A UnB era (...) muito nacional. Hoje não. Ela tem que ser internacionalizada.” diz o senador Cristovam Buarque.

Além de senador, Cristovam foi o primeiro reitor da UnB pós-ditatorial. Ao assumir a reitoria, entendeu que as idéias de Darcy ainda eram atuais, mas que precisavam ser reformuladas. E foi isso que ele fez. “A minha idéia é que a Universidade deve ser tridimensional, dividida por departamentos. Foi assim que o Darcy Ribeiro também pensou.” diz ele. Da mesma forma, afirma Beto Almeida ao dizer que “A semente da Universidade Necessária jamais morreu. (...) Várias gerações de estudantes resistimos, enfrentamos (...) para que o Brasil chegasse a ser o que é hoje, quando possui (...) instituições de ensino superior de cunho transformador, universidades necessárias”. Sobre as adaptações que ocorreram, Cristovam disse-nos que “A diferença é que defendo, também, que devem ser divididos por grupos temáticos (...). Nesses mesmos núcleos você põe pessoas de profissões diferentes trabalhando nos mesmos temas.”.

Dentre os principais projetos educacionais que foram adaptados, temos o de “ensino e pesquisa integrados” que se transformou no que hoje é o tripé da UnB. Nesse tripé, o ensino, pesquisa e a extensão se interligam, sendo complementares, mas também independentes. “O que a gente sabe que hoje é extensão cabia naquele projeto político pedagógico. (...) A formação do futuro profissional passava por uma experiência que era mais próxima da comunidade onde o profissional iria atuar.”, diz Cristina Madeira mostrando as semelhanças entre o projeto atual e o original de Darcy Ribeiro.

Com a recuperação da liberdade de expressão, foi possível identificar todos os erros e acertos que a ditadura militar produziu. “A Universidade Brasileira ficou com o mesmo número de alunos durante décadas. Havendo uma pressão muito grande para criar vagas. A solução foi o surgimento dos cursos particulares que (...) cresceram ao longo do tempo. Nisso, a crise das Universidades aumentou, ainda mais por falta de dinheiro, e por conta de greves e mais greves, fortalecendo cada vez mais o ensino particular. (...) A UnB está pagando um preço alto por isso.”, conclui o senador Cristovam.

Então, o que temos hoje é uma tentativa de retorno dos projetos “darcyanos”. Esse retorno está acontecendo de forma ousada, sendo aplicadas na universidade para serem experimentadas. Por exemplo, a UnB se tornou pioneira no sistema de PAS (programa de avaliação seriada) e no de cotas para negros e indígenas, que arrancaram elogios pelo Brasil afora.

Com o PAS, outro discurso de Darcy se torna realidade ao integrar a universidade com o ensino médio. Assim, os jovens passam, desde cedo, a conhecer as propostas de uma universidade e a pensar sobre seu futuro profissional.

No sistema de cotas, acontece a integração entre grupos étnicos (negros e indígenas) ao campo universitário. São lhes dado uma oportunidade que poderia nunca acontecer sem o tal sistema. Os indígenas, apesar de grandes dificuldades, poderão usufruir das últimas descobertas do mundo “moderno” e levar para a sua tribo, principalmente se for da área médica. “Como uma universidade criativa que se propõe a avançar algumas idéias, a inovação e criatividade é um dos princípios que rege a Universidade de Brasília. Existem as questões controvérsias (...), mas a UnB não se omite em fazer um enfrentamento, gerando um grupo de discussão, como num projeto de política pedagógica.”, conclui Cristina Madeira.

Um beijo para Darcy Ribeiro

Graças aos seus ideais educacionais, muito do Brasil e do mundo foi modificado para melhor. É mais que óbvio que uma pessoa como ele teria muitas homenagens pelo mundo afora. E realmente teve. Além de levar o nome do campus mais movimentado da UnB, é também nome no campus da Universidade Estadual de Montes Claros. No Rio de Janeiro, há uma universidade chamada Darcy Ribeiro (é a antiga Universidade Estadual do Norte Fluminense, idealizada pelo próprio Darcy). Por sua vida profissional, ganhou também o título de Doutor Honoris Causa nas universidades de Brasília, Montevidéu (Uruguai), Copenhague (Dinamarca), Venezuela Central (Venezuela) e Sorbonne (França). Por fim, em 1992, cinco anos antes de sua morte, ocupou uma cadeira na Academia de Letras Brasileiras.

Hoje, com o intuito de homenagear Darcy, está sendo construído um memorial no campus da UnB que levará o seu nome. Esse local já tinha sido planejado por Darcy e abrigará todo o seu acervo histórico. Além de ser um local de estudo, terá também um anfiteatro. Como ele mesmo dizia, será um local perfeito para o encontro de amigos e de namorados, sendo apelidado de “Beijódromo”.